quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Reflexões sobre o funcionamento assembleário I

Nas Assembleias da Acampada Lisboa (Democracia Verdadeira Já) houve grandes polémicas sobre o processo de decisão. Alguns, atribuem a essas polémicas o insucesso do acontecimento [aqui denotando que o consideram um insucesso. Isto é duvidoso - a Acampada Lisboa não só continua no mesmo espírito de abertura à sociedade com Assembleias semanais todos os sábados; como promove agora, conjuntamente com outros movimentos, uma grande mobilização popular a 15 de Outubro].

Passados esses tempos conturbados, estabilizada que está a estrutura da Assembleia Popular do Rossio, e dada o início dos trabalhos conducentes à preparação da Assembleia do 15 de Outubro, parece-me valer a pena voltar ao assunto, começando a alinhavar pensamentos dispersos que me ocorreram sobre ele.

Que fique bem clara desde já a minha perspectiva sobre as Assembleias Populares. Para mim, uma Assembleia é um instrumento de transformação colectiva, não é uma reunião pública destinada a cada um fazer valer as suas convicções e preocupações na ânsia de convencer os outros da sua justeza e urgência. É um local de definição de pontos comuns e, até certo ponto, um local de aprendizagem das regras democráticas sobretudo em sociedades com deficientes níveis de participação política. Sobre esta perspectiva alguns tópicos e desmistificações parece-me importante que sejam retidas:

  1. Muito mais que os infiltrados e sabotadores, a pressa é a grande inimiga das Assembleias. As urgências são perigosas e fracturantes. Uma urgência não é na maior parte das vezes uma urgência. Sobretudo se não houver consenso sobre essa urgência. Nenhuma coisa é mais urgente que o debate calmo e aprofundado das propostas. É imperioso que haja amplo lugar para ele. Só ele solidifica internamente um movimento e evita fracturas. Só ele permite determinar os pontos comuns que unem a Assembleia. As participação nas Assembleias é voluntária - se não houver pontos comuns a Assembleia não faz sentido. Não há que temer dizê-lo.
  2. A opção pelo consenso como processo de decisão não elimina a capacidade de decisão. Assegura sim, um efectivo debate, uma efectiva abertura da proposta original à opinião de todos, uma efectiva transformação das propostas individuais ou de pequenos grupos no sentido de pontos comuns a todos.
  3. A opção pelo consenso não é a ditadura da minoria. O que não consegue ser consensualizado simplesmente não é consensualizado. Só isso. E isso não tem nada de grave. Há que saber aceitar que as ideias que nos são queridas e estruturais poderão não ser queridas e estruturais aos outros. A escolha do consenso como método de chegar a uma decisão permite perceber que parte das nossas ideias é comum aos outros, mas não nos impede de as desenvolver individualmente ou em grupo, em toda a sua pureza. No final tudo, mesmo TUDO, é uma decisão nossa, de cada individuo ou corrente na Assembleia. Não há que temer essa diversidade, não há que exigir consensos sobre o que quer que seja. Se não se formarem, não se formam. E prontos. Podemos ir para casa felizes.
  4. A não existencia de um consenso numa Assembleia não significa inacção. As Assembleias Populares não são tudo, há multiplas formas de intervenção paralelas a elas. As Assembleias Populares são apenas lugar de encontro, debate e tomada de decisão comum. Se algo é verdadeiramente importante, então mesmo que não seja decidido numa Assembleia Popular, esse algo acabará inevitavelmente feito pela vontade individual ou de grupos. E, na maior parte das vezes, se houver pontos comuns estabelecidos por consenso, essas múltiplas acções individuais serão convergentes. Mesmo sem uma decisão global da Assembleia Popular sobre cada acção específica ter sido atingida.
  5. É importante chegar a um consenso sobre o modo de funcionamento da Assembleia Popular e de tomada das decisões. Caso isso não seja possível devem ser votados esses aspectos por maioria. Mas se chegarmos à votação por maioria, então devemos ter presente que parte dos elementos originalmente presentes no local poderão não se integrar na Assembleia por discordarem do seu funcionamento. Formarão provavelmente outra Assembleia, noutro local e com outras regras. Isso não tem nada de mal. Haverá por certo convergência na acção, diálogo e respeito entre as várias Assembleias se no início, existiam objectivos comuns.
  6. O facto de se apostar no consenso como processo de decisão não quer dizer que o funcionamento da Assembleia Popular não possa incluir votações por maioria. O que é importante é consciencializar todos de que: a) as decisões têm menos força humana por trás delas que as decisões por consenso e b) ninguém deve obrigar outrém a segui-las só porque a Assembleia aprovou (argumentos como "ah, mas a assembleia decidiu X por isso tens de fazer X" não cabem no meu raciocínio assembleário). Obviamente, quando uma Assembleia Popular decide algo por votação, alguma responsabilidade e ponderação cabe também aos que apresentaram os argumentos derrotados - será caso para fracturar? a decisão coloca em causa os seus objectivos últimos? são decisões que devem ser tomadas com calma e ponderadamente e a que o calor das discussões geralmente não ajuda. Duante esse processo, deve-se ter sempre presente que a Assembleia toma decisões sobre o movimento, não sobre os indivíduos. Por isso, cada qual pode ou não cumprir, e ninguém é obrigado a ficar se não se identificar com o rumo do movimento e se sentir angustiado.
Alguns destes tópicos derivam da minha própria experiência e entendimento do que se passou e passa no Rossio. Outros, derivam de acontecimentos externos. Um, em particular, considero marcante e particularmente inspirador. Verificou-se em Madrid, nas primeiras semanas de Agosto. Perante retirada do ponto de informação do M15 nas Puertas del Sol, várias Assembleias Populares se realizaram com o intuito de "retomar" a praça. As Assembleias Populares ocorreram de forma caótica, desorganizada, a horas e locais não programados, quando as pessoas que neles se encontravam o decidiam. Nota: situação que exija uma tomada de posição mais forte e urgente é difícil de conceber. Infiltrados, deve ter havido mais de muitos. Por isso acho a situação um bom teste ao mecanismo de decisão assembleário por consenso. Saliento alguns factos:

  1. Não foi por terem ocorrido várias Assembleias Populares em vez de uma única assembleia (maior, mais forte e mais representativa) que a resposta do M15 foi menos determinada.
  2. Não foi por ter ocorrido uma grande  diversidade de protestos e de manifestações, umas maiores outras menores, convocadas para vários locais e várias horas por diferentes Assembleias Populares e movimentos, que a resposta do M15 foi menos forte.
  3. Não foi por não ter havido consenso em várias Assembleias Populares em relação a acções concretas e urgentes que a resposta do M15 foi menos eficaz - o que não foi consensualizado não foi, mas as acções individuais continuaram a ser realizadas. E acabaram revelando a convergência que existia em torno do que era comum (no fundo a retomada não-violenta da praça).
  4. E a praça foi retomada. Sem nunca uma Assembleia Popular se tentar sobrepor às outras, sem nunca uma acção se tentar sobrepor às outras, apesar de o consenso nunca ter sido atingido em todas as Assembleias Populares.
Deixo isto à reflexão de todos.

2 comentários:

  1. Não percebo neste texto como é que surge aqui a questão do "consenso" que durante umas 20 assembleias nunca foi consensual; pelo contrário, em várias assembleias foi reiterada a regra dos 2/3 que assegura que uma decisão tomada por um colectivo, apesar de tudo muito fluido, corresponde a uma sensibilidade tendencialmente maioritária, mas não fixa nem definitiva. Portanto, seria necessário que definisses o que entendes por consenso - porque essa palavra significa coisas ambíguas já longamente debatidas; será que consenso significa, neste teu texto, 2/3 ou o quê? Espero que as regras do Rossio já estejam suficientemente definidas e que não tenhamos que voltar àquela discussão tão estéril e tão desmobilizadora; o que interessa é agir, e diante das acções é mais fácil criar consenso do que diante de teorias do voto... Como dizes acima, sem saber bem a quem te referes, "há que saber aceitar que as ideias que nos são queridas e estruturais poderão não ser queridas e estruturais aos outros"... Isso é inevitável, por isso é que não tenho fé no consenso...

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  2. É precisamente sobre isso que falo - "o que interessa é agir". Será que é isso que realmente interessa a uma Assembleia Popular? ou será discutir?

    Friso, nunca questionarei a liberdade de 2/3 de executarem qualquer acção. Questiono sim a ânsia de verem as suas acções legitimadas numa Assembleia. Primeiro porque não há necessidade (não precisam de qq legitimação para executar a acção). Depois porque ao fazerem-no tendem a fazer os outros ser parte de algo que não querem.

    Talvez devessemos ter discutido mais tempo o sistema de voto. As acções que fizemos , com tanta urgência, e que foram aprovadas por 2/3 depois de intenso debate, será que foram assim tão relevantes? questiono-me, apenas isso.

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